sábado, 15 de março de 2014

Carta a quem me deu colo e fez feliz!


De repente deste por ti em casa. Sonha-se sempre muito com o descanso no final de uma vida de trabalho. Fazem-se planos, promessas e depois, talvez seja uma travagem demasiado brusca. Demasiado brusca para ti.
     Sempre te admirei, tínhamos uma adoração mútua que os teus filhos implicavam contigo "Quero ver se quando tiveres netos também lhes pegas assim ao colo!". Todos os domingos passava pela tua casa à noite e chateava tanto os meus pais "Eu quero ver o Tio Manel!" que eles acabavam por me fazer a vontade, mesmo que no dia anterior tivesse estado a tarde toda contigo. Sabiam o quanto te adorava e que para mim no alto da minha inocência era impossível passar pela tua casa uma única vez sem te ver. E então batia à porta da cozinha e assim que se abria ia a correr para o teu colo. E ali eu sentia-me tão feliz, tinha o mimo, o carinho e a protecção que toda a criança podia ter. Era a sensação de "aqui contigo nada me acontece". Tinhas sempre tempo para mim, andavas de bicicleta comigo, sentavas-me cá atrás na pasteleira e lá íamos nós, comigo todo contente a disfrutar da viagem. E se desfrutava!! Levavas-me para a horta, contavas-me tudo sobre as culturas, as árvores, mostravas-me o que tinhas semeado e de semana para semana lá me descrevias o que tinha mudado, se as macieiras já tinham fruto, se as ervilheiras já tinham crescido mais de um palmo. Lembro-me de ser pequenino e andar a teu lado, contigo a trabalhar, e perguntares-me "Então o que é que é isto que está ali plantado? Tens a certeza? E lá ao fundo o que está a nascer?" e eu empenhava-me por responder correctamente a tudo, queria  muito que soubesses que guardava tudo o que me dizias. Levavas-me a tratar dos animais e ensinaste-me a admirá-los, respeitá-los e a tratar deles com carinho, deixavas-me brincar todo o dia, fazer festas aos cães e aos gatos, pegar nos coelhinhos pequeninos, dar de comer às galinhas. Contavas-me histórias da tua vida, de quando eras jovem, da tua ida para a tropa, das viagens num navio durante meses durante a Guerra Colonial, de como menino tiveste de sair de casa cheio de medo para ir trabalhar. A vida foi-te dura e nunca te ouvi queixar. A vida podia ser dura, mas tínhamos de continuar, nunca podíamos desistir e havia de correr bem, não era assim tio? Passávamos horas a conversar, podia ser o dia inteiro e nunca me aborrecia, não havia relógio algum que pudesse blasfemar "já chega", porque nunca era tempo a mais. Fui crescendo e eras tu que lá estavas para poder começar a falar de Política e entusiasmar-me com as discussões sobre o tema. À minha volta parece que ninguém queria falar ou subtilmente davam a entender que não devia falar disso, que ainda era muito novo e que trazia problemas. E tu não - "deixem ouvir o meu menino!" e quando eu frenético sentia apoio e começava a falar sem parar, tu rias-te com aquela gargalhada sonora e contagiante, tão tua, e dizias com um brilho nos olhos "Ainda te hei-de ver deputado!".
     Os anos foram passando, eu cresci, a família ganhou novamente a sua dinâmica, como todas as outras e perdeu a complacência pela nossa relação e pelos meus sonhos e ingenuidade de criança. As minhas reivindicações para parar à porta da tua casa foram sendo progressivamente olvidadas. E eu percebo. Os meus pais queriam que eu crescesse e eu cresci e devo-lhes isso.  É mesmo assim. A vida complica-se. E tu depois começaste a ter os teus netinhos e a tua família reunida, o teu ninho. E isso é bonito.
     Fizeste uma grande festa nos teus 65 anos, estavas radiante. Tinhas toda a gente ali contigo. Lembras-te? Não te podes esquecer! Foi um dia muito feliz! Eu gostei, sabias? Fui criança outra vez, contigo.
     Mas depois reformaste-te, os teus dias foram escurecendo, começaste a não querer acordar tão cedo, a enxada parou de cavar na horta, deixaste de dar comer às galinhas e a tua gargalhada desapareceu. Passaste a ficar sentado na mesa do quintal a ver os carros a passar... Onde é que nós estamos tio? Onde está aquele menino e o homem feliz que ele tanto adorava?
     Durante esta semana ninguém me disse nada. O pai e a mãe para me proteger combinaram que nada me diriam até eu chegar, no fim-de-semana. E então no caminho para casa, já de noite escura, o pai contou-me que tinhas tentado desistir. Eu mergulhei no silêncio e voltado para o vidro da janela do carro, as lágrimas caíram-me sem licença. E o meu coração ficou apertado. O pai não deve ter visto.
     O que foi que te aconteceu? Queria tanto poder retribuir-te o colo e ver-te feliz! Telefonei-te há uns dias atrás, no teu aniversário e prometi que te visitava. E pediste que te fosse mesmo ver, que agradecias mesmo muito. Eu demorei-me e tu quase não esperaste. Já não acreditaste que eu entraria a correr pela cozinha, a rir, direito a ti. O teu menino ainda existe. Não desistas meu companheiro, ainda quero ouvir mais histórias, passear contigo, falar da política, e acima de tudo, ainda quero ouvir a tua gargalhada. Fui uma criança muito feliz ao teu lado. Obrigado tio, gosto muito de ti!

2 comentários:

  1. Deve ir dizer-lhe isso, Francisco. Entendo tão bem que se queira desistir quando o corpo já quase se não aguenta...E não sei mesmo se alguém pode evitar. Veja se é apenas a depressão da reforma e da inutilidade - essa tem cura, nem que seja com comprimidos e uma ocupação mais leve.
    Porém, quando profundamente se desiste...não creio que haja alguma coisa que afaste essa vontade. Por se tornar doentio.
    Auilo que sei, também profundamente, é que o amor dos outros nos é sempre bemvindo. E nos ajuda. Na vida. E também nas decisões de morte. Que são ainda vida.

    Um beijinho

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  2. A depressão há muito que lhe é tratada e até foi melhorando, mas nunca mais foi o mesmo e esta semana tudo lhe foi demasiado pesado, difícil.
    Penso que tem razão Just, quando profundamente se desiste não há placebos que actuem...

    Beijinho

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