terça-feira, 25 de março de 2014

As Pequenas Memórias - José Saramago





Acabo de ler As Pequenas Memórias de José Saramago e a sensação é de vazio. Mau sinal? Pelo contrário. Quando gostamos muito de um livro, como eu gostei deste, e o lemos quase compulsivamente, no final, fica um vazio. "E agora? Para onde foram? E eu? Deixam-me aqui?" - Talvez nos perguntemos a nós próprios tudo isto.
Saramago levou tempo a chegar à minha vida. Comecei a espreitá-lo de longe, a lê-lo nas entrevistas, a vê-lo nos vídeos e no filme José e Pilar, mas acima de tudo, a discuti-lo e a aprender a gostá-lo com a minha amiga e ex-professora Elisabete. Devo-lhe este caminho. E talvez por este mesmo caminho, ao ler parecia ouvir a voz dele a contar-me as suas histórias.
As Pequenas Memórias é um livro de memórias, como o título indica, que me permitiu revisitar muitas histórias e passar horas envolto em magia e ternura. Não obedecendo a uma linha cronológica rígida e sucessiva, pois as memórias também não se organizam estrategicamente em filas de cores ou por ordem alfabética, as vivências de José Saramago vão surgindo conforme vai trilhando o seu caminho na escrita.
Quando digo que revisitei histórias, claro que muitas delas não foram vividas por mim, mas sim pelo meu pai, pelos avós, tios, que me foram confiando ao longo da minha jovem existência episódios da simplicidade da vida de antigamente, simplicidade que contrastava com uma vida dura, de trabalho árduo, pobreza e ausência total de luxos. E eu cresci perto do campo, numa aldeia, conheço essas realidades, nem que seja por as ter ouvido.
Começando por recordar os extensos olivais da Azinhaga da sua infância, que deram lugar aos infindáveis campos de milho híbrido, Saramago vai-nos falando da sua meninice, dos avós maternos - a avó Josefa e o Avô Jerónimo (recordou-me o meu bisavô Jerónimo que viveu até aos 97 anos, não sabia ler nem escrever e era um poço de alegria apesar da vida sofrida que tivera, trabalhando até aos 80 anos quando se reformou e criando os seus numerosos filhos, mais aqueles que apareciam e que tanto ele como a Avó Joaquina, nunca deixavam sem tecto e sem comida. A mesma bisavó que já velhinha, sentada e sem se poder mexer, me ouvia a correr em direcção a ela, com uns 2 ou 3 anitos e dizia para a filha "Lá vem o nosso menino". É talvez a imagem mais antiga que tenha, correr e agarrar-me às pernas daquela velhinha, que me adorava e me fazia festinhas no cabelo, despertando de um cansaço de viver há muitos anos.), das brincadeiras com o seu primo José Dinis, os primeiros namoricos e descobertas do corpo, do seu e do feminino, da horta e das barrãs e bacorinhos dos seus avós, da maneira como a avó Josefa controlava as despesas que fazia, num caderninho, usando um esquema de bolinhas, cruzes e pauzinhos que nunca a enganava, mas também das dificuldades em Lisboa, nas mais de dez moradas que partilhou com os seus pais. Casas onde dormia no chão, só havendo um quarto, o dos seus pais, chão onde durante a noite, deitado, lhe passavam as baratas por cima. Conta-nos o seu percurso escolar, a forma como muitas vivências o inspiraram na escrita de outros livros e em pinceladas entremeadas de humor e de uma racionalidade desconcertante faz-nos mergulhar na imensidão dos seus pensamentos e das suas recordações, ora doces e saudosas ora amargas e melancólicas.
Não quero contar o desfecho do livro, nem a sua história. Penso que deve ser lido e cada um deverá saboreá-lo com a inocência da primeira vez. Contudo deixarei de seguida, alguns excertos deste maravilhoso livro onde Saramago fala dos avós. E quem "teve" avós partilhará comigo o carinho destas descrições:

Muitos anos depois, minha avó contou-me que, quando me entregavam aos seus cuidados, ela me sentava na casa de fora, em cima de uma manta estendida no chão, donde, às tantas, lhe chegava a minha voz: "Ah bó, bó." "Que queres tu, meu filho?", perguntava ela. E eu respondia, lacrimoso, chupando o dedo polegar da mão direita (seria da mão direita?): "Eu quero caca." Quando ela acudia ao pedido de socorro era tarde de mais. "Já estavas todo borrado", dizia-me a avó, rindo.



Ainda não falei dos meus avós paternos. Como costumava dizer o poeta Murilo Mendes do inferno, existir, existiam, mas não funcionavam. (...) Quem não apreciava nada esta preferência incondicional pelos avós maternos era o meu pai, que um dia, tendo eu dito "os meus avós", referindo-me aos pais da minha mãe, corrigiu secamente, sem se dar ao trabalho de disfarçar o despeito: "Tens outros." Que havia eu de fazer? Fingir um amor que não sentia? Os sentimentos não se governam, não são coisas de tirar e pôr de acordo com as conveniências do momento, menos ainda se, pela idade, é um coração desprevenido e isento o que levamos dentro do peito.


Tu estavas, avó, sentada na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabias e por onde nunca viajarias, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e disseste, com a serenidade dos teus noventas anos e o fogo de uma adolescência nunca perdida: "O mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer." Assim mesmo. Eu estava lá.



Aproveito ainda, finalizando, desejar que este livro possa ser lido como prova do talento e obra de José Saramago, pois é cansativo e injusto ouvir muita gente a falar dele caindo habitualmente em lugares comuns. É necessário compreender a inteligência e humor deste grande escritor, que não prima por ser fácil e fugir a reflexões e críticas construtivas ao que o rodeia. 

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