Análise da
obra A Confissão da Leoa de Mia Couto
e das suas personagens como símbolos da realidade africana.
Quando, em 2008 a empresa, para a
qual Mia Couto trabalhava, enviou quinze jovens como oficiais ambientais de
campo durante a abertura de linhas de prospecção sísmica em Cabo Delgado,
região do Norte de Moçambique, começaram a ocorrer sucessivos ataques de leões
a pessoas. Em quatro meses, as vítimas chegaram a cerca de vinte. Por
iniciativa dos trabalhadores da empresa, foi sugerido à companhia petrolífera,
encarregue das actividades de prospecção, que contratasse caçadores
profissionais que eliminassem os leões apreciadores de carne humana, para que
os ataques cessassem. Deslocaram-se dois caçadores de Maputo para a Vila de
Palma, onde os ataques de leões se centravam.
A eles juntaram-se caçadores locais, pisteiros, velhos anciãos e durante
dois meses, nada caçaram. Findos esses meses, mataram os leões assassinos.
Contudo, não foi só essa espera que os caçadores recém-chegados enfrentaram,
além da frustração de dois meses sem presas aniquiladas, tiveram de lidar com
as histórias e os mitos das povoações e o que separa a imaginação da realidade.
Quantos ataques teriam ocorrido mesmo? Que leões eram aqueles? As dúvidas instalavam-se.
Inspirado neste acontecimento real,
Mia Couto escreve A Confissão da Leoa
e poderia até cingir-se à estrutura e à história de um policial na busca de um
assassino em série. Teríamos os ingredientes para tal. A história começa com o
enterro de Silência, a última filha de Hanifa Assulua a ser, supostamente,
atacada por leões e, para culminar, bastaria ao autor dar-nos o trilho que nos
levaria ao covil do assassino pelas mãos do herói caçador, Arcanjo Baleiro.
Mas A Confissão da Leoa é muito mais do que isso. Este romance é um
retrato complexo e profundo da realidade africana nas suas diversas dimensões,
personificado por um elenco de personagens extremamente bem caracterizadas que
nos revelam a condição das mulheres em África, a forma como são secundarizadas,
vítimas de abusos, escravas dos homens que as dominam, obrigando-as a trabalhar
e a satisfazer todos os seus desejos. Aludindo ao título, também na vida
selvagem é assim, os machos ficam deitados, espreguiçando-se enquanto as fêmeas
tratam das crias e caçam para todos, sendo, no entanto, as últimas a comer do
que sobra da fome e do capricho dos leões. Este elenco revela-nos igualmente
como é a infância no continente africano, principalmente nos países em guerra,
a pobreza, a escassez da educação e a importância dela como verdadeira arma
para combater o que de pior existe, mostra-nos a visão ocidental de África, o
oportunismo político e a corrupção dos governantes, a atitude dos agentes
policiais que, em vez de protegerem os mais fracos, abusam deles e abraçam-se
aos poderosos, apresenta-nos a repressão e tiraria masculina, a nobreza dos
verdadeiros caçadores ao invés do abate indiscriminado e cobarde de animais, a
importância dos rituais e a forma como as pessoas alimentam os mitos e vivem
deles e a ténue barreira entre a realidade e a ficção.
A história centra-se na aldeia de
Kulumani, onde as vítimas, mulheres, são supostamente atacadas por leões. Uma
empresa contrata um caçador profissional para eliminar os leões e restabelecer
a paz, Arcanjo Baleiro. A acompanhá-lo vai Gustavo Regalo, escritor que fará a
reportagem da caçada e a eles associa-se o administrador da região, Florindo
Makwala que tenta colher dividendos políticos que o popularizem, além da sua
esposa anafada, Dona Naftalinda, que na verdade é mais uma activista na defesa
dos direitos das mulheres, como o demonstrará na defesa e indignação contra os
abusos e morte da sua empregada Tinda, do que uma simples primeira-dama apagada,
como o marido gosta de lhe chamar. Esporadicamente, surge também Maliqueto
Próprio, o agente policial de Kulumani. Arcanjo Baleiro parte deixando para
trás o seu irmão Rolando Baleiro num Hospital Psiquiátrico e a sua cunhada
Luzilia, enfermeira naquele hospital e o grande amor da sua vida. Contudo, em
Kulumani espera-o uma apaixonada distante, de há 16 anos aquando da caçada de
um crocodilo naquela mesma aldeia, Mariamar. Mariamar é irmã de Silência, a
última vítima dos leões a ser sepultada, é também irmã de Uminha e Igualita,
igualmente já falecidas, e filha de Hanifa Assulua, a empregada que cuidará das
instalações onde ficarão Arcanjo e Gustavo, e de Genito Serafim Mpepe, o
pisteiro que ajudará Arcanjo na caçada. É também através do diário de Mariamar
e das suas memórias que ficamos a conhecer personagens como o Padre Missionário
Português, Manuel Amoroso e o seu avô, tio materno, Adjiru Kapitamoro. Destaco
ainda uma personagem que recebe o caçador aquando da sua chegada à aldeia, que
se trata de um ex-soldado cego.
A
Confissão da Leoa é-nos contada por dois protagonistas através dos seus
diários, Mariamar e Arcanjo Baleiro, o caçador. É nesses diários que nos é
desvendada toda a história do romance e os detalhes das personagens. Não
pretendendo fazer um resumo do livro, focar-me-ei nos aspectos de cada
personagem que ilustram os vectores que considerei serem caracterizadores da
realidade africana e que tornam este livro num precioso contributo para um
olhar atento e perspicaz dessa mesma realidade e que consagram Mia Couto um dos
maiores autores lusófonos.
Antes de me debruçar sobre cada
personagem, e abordando a questão da fronteira entre a realidade e a ficção e
forma como, por vezes, dificilmente se dissociam, deixo duas questões: Que
leões eram aqueles? Porque matavam pessoas? Respondendo, deixarei alguns
excertos do texto, pois estas dúvidas são transversais à leitura de todo o
romance, daí o meu destaque:
"Esta gente, porém,
olha-me de soslaio. A pegajosa mão do cego volta a prender-me o braço:
- Você traz uma
espingarda? Para quê? Estes leões não se matam com bala."
-
Devia ser Tandi, a nossa empregada -
corrige a primeira-dama. - Acontece,
porém que ela foi...
- Ela está
incomodada - interrompe às pressas Florindo.
- Incomodada? Que
palavra é essa, marido? Incomodada?
Makwala empurra com firme gentileza a esposa para o quintal.
Lá fora, ainda discutem. Aos poucos, as vozes desvanecem-se. Parece terem-se
afastado, mas os passos nervosos de Naftalinda confirmam que regressa,
empenhada em nos deixar com a sua última palavra:
- Só para que fique
claro: incomodada quer dizer atacada, quase morta. E não foram leões que o
fizeram. A maior ameaça, em Kulumani, não são as feras do mato. Tenham cuidado,
meus amigos, tenham muito cuidado.
Por isso, Gustavo segue como uma sombra os passos da
empregada. Hanifa enche uma lata e água quando o escritor lhe pergunta sobre as
circunstâncias que rodearam a morte da filha.
- O que sucedeu
naquela noite? Ela estava fora de casa, àquela hora?
- O leão
estava dentro.
- Dentro de
casa?
- Dentro - repete, num quase
inaudível sopro.
O administrador tenta quebrar o gelo exclamando com
despropositado entusiasmo:
- O nosso caçador
tem uma explicação para os ataques dos leões. Explique lá ao camarada Genito,
ele precisa saber...
Para mim era evidente: os camponeses tinham exterminado
os animais pequenos, que constituem o alimento dos grandes carnívoros.
Desesperados, estes passaram a atacar as aldeias. As pessoas são presas fáceis
para os leões. Esta ruptura na cadeia alimentar - foi este o termo que usei com
alguma petulância - era a razão do pouco usual comportamento dos leões.
- Porcos -
sentencia o pisteiro, enfrentando-nos.
Num primeiro momento pensei que nos insultasse.
- A culpa é dos
porcos! - repete.
(...) Genito Mpepe conclui, então:
- Foram os porcos
que ensinaram o caminho aos leões.
Os porcos selvagens visitavam os quintais, atraídos pelas
culturas em redor das casas. Os leões seguiram o seu rasto e invadiram, assim,
um espaço que nunca antes tinham ousado transpor.
O cego que nos perseguiu na noite da chegada também está na
ronda dos entrevistados. (...) Continua descalço, envergando o mesmo camuflado
militar.
- Que exército o
senhor serviu? - pergunta o
escritor.
- Servi todos -
responde prontamente. Apontando na minha direcção, acrescenta: - E lembro-me bem da voz daquele senhor.
- Não é possível, a
minha voz?
-
Desculpem, não quero ofender, mas queria perguntar: por que razão chamaram um
caçador? Deviam chamar-me a mim que sou soldado.
- Não entendo -
argumenta o escritor - O que é que isto
tem a ver com soldados?
- Você não
está a ver? Isto, meu senhor, isto não é uma caçada. Isto é uma guerra.
A guerra é que explicava a tragédia de Kulumani. Aqueles
leões não emergiam do mato. Eles nasceram do último conflito armado.
Repetia-se, agora, a mesma desarrumação de todas as guerras: as pessoas
tornaram-se animais e os animais tornaram-se gente. Durante as batalhas,
cadáveres foram deixados no campo, nas estradas. Os leões comeram-nos. Naquele
preciso momento, os bichos quebraram o tabu: começaram a olhar as pessoas como
presas. O cego, enfim, encerrou o longo discurso:
- Já não somos
donos, nós os homens. Agora, eles mandam no nosso medo.
Depois discorreu com eloquência e sem interrupção:
- Aconteceu o mesmo
no tempo colonial. Os leões fazem-me lembrar os soldados do exército português.
Esses portugueses tanto foram imaginados por nós que se tornaram poderosos. Os
portugueses não tinham força para nos vencer. Por isso, fizeram com que as suas
vítimas se matassem a si mesmas. E nós, pretos, aprendemos a nos odiar a nós
mesmos.
Inesperadamente, uma voz feminina se faz escutar,
herética e imprevista:
- A caçada devia
ser outra. Os inimigos de Kulumani estão aqui, estão nesta assembleia!
A intervenção alarma todos os presentes. Surpresos, os
homens encaram a intrusa. É Naftalinda, a esposa do administrador. E ela está
desafiando as mais antigas interdições: as mulheres não entram na shitala. E muito menos estão autorizadas
a emitir opinião sobre assuntos desta gravidade. O administrador acorre a
retificar o incidente:
- Camarada
primeira-dama, por favor, este é um encontro privado...
- Privado?
Não vejo nada de privado, aqui. E não me olhem assim que não tenho medo. Sou
como os leões que nos atacam: perdi o medo dos homens.
-
Naftalinda, por favor, estamos reunidos aqui segundo a tradição antiga - solicita Makwala.
- Uma mulher foi
violada e quase morta, nesta aldeia. E não foram leões que o fizeram. Já não há
lugar proibido para mim.
Evolui com arrogância entre os anciãos, sorri com desdém
para o administrador e detém-se, por fim, à minha frente:
- Você voltou a
Kulumani, Arcanjo Baleiro? Pois dê caça a estes violadores de mulheres.
- Mamã, há
que pedir a palavra
- adverte Florindo Makwala.
- A palavra é
minha, não preciso pedir a ninguém. Estou a falar consigo, Arcanjo Baleiro.
Aponte a sua arma para outros alvos.
- Que
conversa é esta, esposa?
- Fingem
que estão preocupados com os leões que nos tiram a vida. Eu, como mulher,
pergunto: mas que vida há ainda para nos tirar?
Hanifa vem chamar-me, alta noite. Está tão alarmada que
desato a segui-la sem mudar de roupa. (...)
- Os leões chegaram
a minha casa.
Desde que anoiteceu eles rondam a aldeia. Hanifa tinha-os
escutado ao longe.
- Não ouvi nada - confesso
(...) Num instante, estamos no pátio da casa do casal
Mpepe.
- Não acenda a
lanterna, senhor escritor - pede a mulher, em surdina.
- E como é que vejo
onde piso? - pergunta Gustavo.
- Calem-se, os
dois! E você, Hanifa, chame imediatamente, Genito! - ordeno.
- Ele está a
dormir.
De súbito, Hanifa aponta para uns arbustos que se agitam
e incita:
- Dispare, são os
leões! Dispare!
(...)
- Não dispare, sou
eu, Genito!
O pisteiro tinha ido comprar aguardente na povoação
vizinha. Ergue uma garrafa como prova.
- Agora vá para
dentro, Hanifa. Sabe que não a quero aqui, de noite.
- A sua
esposa alertou-nos - justifica
o escritor - porque lhe parecia que os leões andavam por aqui.
(...)
- Hanifa sabia que
era eu. Ela sabia que era eu que estava a chegar.
Cessando este conjunto de excertos que
quis destacar acerca da fronteira entre a realidade e a ficção, sobre quem são
de facto estes leões, passo a falar de cada uma das personagens e da forma como
cada uma delas nos evidencia os aspectos que considerei fundamentais no
quotidiano africano.
Arcanjo Baleiro - É o caçador
profissional encarregue de matar os leões que atacam a povoação de Kulumani.
Oriundo de uma família de caçadores, já o seu pai, Henrique Baleiro, o era. Aos
10 anos, fica orfão da mãe, Martina Baleiro, vítima de uma estranha doença, e,
pouco tempo depois, do pai, vítima de um acidente, pensava. O seu irmão,
Rolando Baleiro, tinha disparado contra o seu pai. A polícia levou-o e desde então vive num
Hospital Psiquiátrico, tendo sido considerado louco. Desde aí passou a ter
insónias e pesadelos todas as noites. Arcanjo é apaixonado por Luzilia, sua
cunhada, que trabalha no Hospital Psiquiátrico onde o irmão ficou internado e que
sempre cuidou dele.
Venerava o pai "Meu pai era um
homem que enchia o mundo, o pé dele entrava em casa e sentíamos o balanço do
seu peso como se, de repente, estivéssemos num pequeno barco." e talvez
dessa veneração venha a sua postura e dignidade quanto à caça. Não caçava a
qualquer preço, quando chegou a Kulumani, desfez todas as armadilhas que tinham
construído para os leões. É um caçador
em extinção:
Sou o único que resta,
(...) Não tarda, afirmo, que não sobrem animais. Porque esses falsos caçadores
não poupam crias nem fêmeas grávidas, não respeitam os períodos de defeso,
invadem os parques e as reservas. Gente poderosa fornece-lhes as armas e tudo,
para esses matadores, se resume à sagrada trilogia: arma, dinheiro, poder.
Maliqueto Próprio - É o polícia de
Kulumani que em vez de defender a lei e proteger os indefesos, faz o oposto,
exercendo a sua tirania. Por duas vezes, tentou abusar e violar Mariamar. Na
primeira vez, foi impedido por Arcanjo, na segunda, Mariamar conseguiu
defender-se sozinha.
- Você deve-me alguma coisa, Mariamar. Não se lembra? Aqui é
um bom lugar para cobrar o que me deve.
Vai-se libertando da roupa, enquanto se aproxima,
rastejante e baboso.
Genito Mpepe - Pisteiro que auxilia nas
caçadas é um alcoólico e um déspota que maltrata a mulher, a obriga a trabalhar
e que, durante anos abusou das filhas.
O crime foi outro:
durante anos, meu pai, Genito Mpepe, abusou das filhas. Primeiro aconteceu com
Silência. Minha irmã sofreu calada, sem partilhar esse terrível segredo. Assim
que me despontaram os seios, fui eu a vítima. Ao fim das tardes, Genito migrava
de si mesmo por via da lipa, a
aguardente de palmeira. Já bem bebido, entrava no nosso quarto e o pesadelo
começava.
Hanifa Assulua - Esposa de Genito e
mãe de Mariamar, Silência, Uminha e Igualita é uma mulher amargurada e
resignada. Faz todas as tarefas domésticas, cuida da casa e habituou-se a
servir os homens. Por um lado odeia o marido, mas não o consegue confrontar,
chegando mesmo a culpar Mariamar pelos abusos de que foi vítima.
Sem qualquer reacção,
fitei-a saltando sobre mim, agredindo-me com socos e pontapés, insultando-me na
sua língua materna. O que ela dizia, entre babas e cuspos, era que a culpa era
minha. Toda a culpa apenas minha.
Gustavo Regalo - É o escritor que
acompanha Arcanjo na caçada e pretende escrever um livro de sucesso, que
obtenha lucro com esta viagem. Representa a visão ocidental de África, uma
curiosidade, por vezes indelicada, que não respeita a dignidade dos povos e dos
territórios.
Olho com cinismo para aquele comércio de interesses. O
escritor é uma ave de rapina: pede relatos da guerra. Os aldeões esperam alguma
benesse. Um donativo, no linguajar local. Como pode alguém criticar-me pela
minha actividade profissional? Sou um praticante da caça? Pois, o escritor é um
necrófago. Embarcou nesta viagem para debicar desgraças, por entre
sobreviventes cujo luto é o silêncio.
Raspar as feridas do passado: é isso que Gustavo executa
ao esgravatar memórias da guerra civil.
Florindo Makwala - É o
administrador, um político que tenta ser popular e ostentar o seu estatuto e
poder. Quer acompanhar a caçada para obter dividendos e aprovação dos seus
superiores que querem uma solução para aquela matança. A certa altura, na
ausência de resultados, chega mesmo a sugerir forjar relatórios falsos com
resultados sobre as caçadas. Quando matam um leão, pede que o fotografem junto
da carcaça, por puro exibicionismo. A sua mulher dizia acerca dele: "Tenho
pena de Florindo. É um palhaço. Pensa que as pessoas o veneram. Ninguém o
respeita, ninguém o ama."
- Pois faça como
quiser. A verdade, porém, é só uma: seja a pescar, a caçar, o senhor tem que
eliminar esses leões. Faz parte das minhas metas políticas.
Os comedores de gente são para ele um assunto político.
- Os meus
superiores - relembra com ênfase - deram
instruções bem claras: o povo vota, os bichos não. Há que eliminar rapidamente
estes motivos de queixa das comunidades - e retoma a ordem sumária: - Tem que os matar.
Dona Naftalinda - É a esposa de
Florindo, que a trata como a primeira-dama, que, como Mariamar diz, é de uma
terra sem damas. Talvez por isso mesmo, esta senhora muito gorda não se encoste
ao título e enfrente tudo e todos na defesa dos direitos das mulheres, é ela
que denuncia o que aconteceu à sua empregada Tandi, é ela que luta pela
mudança. Chega mesmo a despir-se e a servir de isco para os leões, tendo sido
atacada por uma leoa, gesto que fez com que o marido abandonasse a política e
voltasse a ser professor, emendando-se.
Em contraste com o marido, Naftalinda está desfeita. A
certo momento, quer tomar da palavra. O choro, porém, impede-a de falar.
Recompõe-se, enxuga a lágrima e, aos poucos, assume a gloriosa pose de
exaltação:
- Os leões cercando
a aldeia e os homens continuam a mandar as mulheres vigiarem as machambas,
continuam a mandar as filhas e as esposas coletar lenha e água de madrugada.
Quando é que dizemos não? Quando já não restar nenhuma de nós?
Esperava que as demais mulheres a seguissem naquele
convite à revolta. Mas elas encolhem os ombros e afastam-se, uma por uma. A
primeira-dama é a última das mulheres a abandonar a cerimónia. Por dentro, ela
sente-se a derradeira das mulheres.
Rolando Baleiro - Irmão de Arcanjo é
casado com Luzilia, foi declarado louco por ter assassinado o pai num suposto
acidente, vivendo o resto da sua vida num Hospital Psiquiátrico onde a
conheceu. Na última visita, do irmão que lhe anunciou que ia fazer a sua última
caçada, mostrou o desejo de que a sua esposa o acompanhasse, mesmo sabendo que Arcanjo
a amava. Mais tarde, Luzilia acabaria por ir ter com Arcanjo levando-lhe uma carta
e o pedido urgente para que este regressasse a Maputo, a fim do irmão lhe poder
dizer algumas coisas antes de morrer. Nessa carta, Rolando confessa que matou o
pai propositadamente e que a loucura, além de ter sido o seu álibi, foi a sua
absolvição. O motivo que levou Rolando a matar o pai será desvendado pela
própria Luzilia.
Sim, fui eu que matei o
nosso pai. Matei-o e voltarei a matá-lo sempre que ele volte a nascer. Obedeço
a ordens. Essas ordens foram-me dadas sem palavras. Bastou o olhar triste da
minha mãe. Não tenhas pena de mim, meu irmão. A loucura, primeiro, foi o meu
álibi. Tornou-se depois, a minha absolvição. A nossa mãe sempre avisou: a bala
mata nas duas direções. Ao matar o velho Baleiro eu mesmo me suicidei. Certa
vez depois do falecimento da nossa mãe, tu disseste: quem me dera morrer. Pois
eu te digo, agora. Não é a morte que confere ausência. O morto ainda está
presente: todo o passado lhe pertence. O único modo de deixarmos de existir é a
loucura. Só o louco fica ausente.
Luzilia - É enfermeira e mulher de
Rolando, trata dele há anos, conhece-o como ninguém e tem-lhe uma lealdade
enorme, tanto que, quando Arcanjo lhe entregou uma carta a declarar-se, não a
leu. Foi Rolando que descobriu a carta na sua mala e a leu para Luzilia. Quando
Luzilia vai ter com Arcanjo para entregar-lhe a carta do irmão e pedir-lhe que
regresse a Maputo antes que o irmão morra, revela-lhe a causa da morte da sua
mãe e acaba por indiciar-lhe também que nunca fizera amor com Rolando. No
fundo, a lealdade e o respeito dela por Rolando eram imensos. Genuína bondade.
Embora amasse os dois irmãos, foi sempre leal a Rolando e mesmo quando este
desejou que ela fosse com o irmão à caçada, ela recusou-se. Acabou por ir,
forçada pelas circunstâncias.
-
Há coisas que te devo revelar. Primeiro, sobre a
tua mãe, sobre a morte dela.
- Eu sei o
que aconteceu. Ela estava doente.
- A tua mãe
morreu de Kusungabanga.
- É o nome
de uma doença?
- Digamos
que sim. Uma doença que mata os outros, os que não estão doentes.
No momento não entendi. Mas depois Luzilia explica: na
língua de Manica, o termo Kusungabanga
significa "fechar à faca". Antes de emigrar para trabalhar há homens
que costuram a vagina da mulher com agulha e linha. Muitas mulheres contrarem
infecções. No caso de Martina Baleiro, essa infecção foi fatal.
- Rolando sabia.
Foi por isso que matou o pai. Não foi um acidente. Ele vingou a morte da mãe.
O ex-soldado cego - Este cego,
antigo soldado, tal como Naftalinda chega a dizer a Arcanjo, é um dos poucos
que ainda mostra ter alguma humanidade naquele local. Marcado pelas feridas da
guerra, é um profundo conhecedor da realidade, de como a guerra consegue
mutilar as pessoas, os sonhos, os ideais. Tal como o demonstra o excerto que
anteriormente transcrevi da sua entrevista na shitala, que pode ser lido no início da página cinco. Tem um discurso duro, directo, não há
espaço para eufemismos, para falsos pacifismos, sabe como a vida escasseia num
lugar onde a morte é fácil.
- Você traz uma
espingarda? Para quê? Estes leões não se matam com bala.
O vigor com que me persegue faz-me duvidar da
autenticidade da cegueira. Essa suspeita
agrava-se quando me agarra com o desespero de um afogado e me pergunta:
- O senhor vê-me?
- Por que
pergunta?
-A nós, os
de Kulumani, ninguém nos vê (...)
Adjiru Kapitamoro - Por tradição em
Kulumani, o tio materno mais velho é tratado como avô. Kapitamoro é o avô de
Mariamar que tanto ama a neta e a tenta proteger das agressões e hostilidade
dos pais. É ele que quando a encontra imobilizada dos membros inferiores a leva
até ao Padre Manuel Amoroso, missionário português responsável pela Missão
Portuguesa onde Mariamar viveu nos dois anos seguintes até ficar curada. Era um
velho sábio, quando foi buscar a neta à Igreja perguntou ao padre se lhe tinha
ensinado a dar pontapés. O padre, escandalizado, perguntou se isso era coisa
que se ensinasse a uma menina, ao que Kapitamoro respondeu "Exactamente,
padre. Exactamente por ser menina é que ela deve aprender a dar murros,
dentadas, pontapés...". Isto numa clara referência ao facto de Mariamar,
tal como outras meninas, ter sido vítima de abusos sexuais e merecer saber
defender-se e ser defendida. Kapitamoro era um antigo caçador que, um dia, por
acidente, matou um homem e teve de abandonar a caça, tornando-se num pisteiro,
por se recusar a participar num ritual que o redimisse da morte do homem. De uma enorme nobreza, tornou-se um velho
contador de histórias, atento às tradições, aos mitos e ia até a shitala à noite, levando Mariamar consigo
e com orgulho, o orgulho de quem também tinha ensinado a neta a ler.
Às vezes puxava-me a mim
para o centro e proclamava:
- Você, Mariamar, é
que vai contar histórias.
- Mas eu
sou uma menina, nunca cacei, nunca irei caçar...
- Todos já
caçámos, todos já fomos caçados - argumentava ele.
Mariamar - É a grande leoa da
história, com uma infância sofrida, vítima dos abusos sexuais do pai, da
indiferença e desprezo da mãe, apenas no avô encontrava o carinho que não
recolhia no resto da família. O avô tinha-a ensinado a ler e mostrou-lhe o
valor da educação "Num mundo de homens e caçadores, a palavra foi a minha
primeira arma.".
É ela que nos mostra também como é a
vida das crianças em África, principalmente quando se está em guerra, aquando
da sua paralisia nas pernas:
Na infância, o corpo tem um serviço único: brincar. Mas
não em Kulumani. Os meninos da nossa aldeia pediam às pernas que os fizessem
fugir, à frente do fogo, mais velozes que as balas, Era o tempo em que as armas
varriam as nossas povoações. (...) Sempre me perguntei se em Kulumani existiam
crianças. Pode-se chamar de criança a uma criatura que lavra a terra, corta a
lenha, carrega água e, no fim do dia, já não tem alma para brincar?
Mariamar apaixonou-se por Arcanjo de
quem ficou grávida, esperou por ele durante anos, perguntando-se o porquê de
ele a esquecer. Naquela altura Arcanjo bebia muito e fora há 16 anos atrás que
tudo ocorrera, Arcanjo nem soubera da gravidez dela. Contudo, devido aos
sucessivos abusos sexuais do pai, Mariamar perdeu o filho e foi considerada
infértil.
Virá a confessar, no final, que era
ela a leoa e que se vingou, a vítima que eliminou as outras vítimas, incluindo
as suas irmãs.
E aqui deixo escrito com
sangue de bicho e lágrima de mulher: fui eu que matei essas mulheres, uma por
uma. Sou eu a vingativa leoa. A minha jura permanecerá sem pausa nem cansaço:
eliminarei todas as remanescentes mulheres que houver, até que, neste cansado
mundo, restem apenas homens, um deserto de homens solitários. Sem mulheres, sem
filhos, acabará assim a raça humana. (...) E nunca mais me pesará culpa como
sucedeu da primeira vez que matei alguém. Nessa altura, eu era ainda demasiado
pessoa. Sofria dessa humana doença chamada consciência. Agora já não há
remorso. Porque, a bem ver, nunca cheguei a matar ninguém. Todas essas mulheres
já estavam mortas. Não falavam, não pensavam, não amavam, não sonhava. De que
valia viverem se não podiam ser felizes?
Porventura, a análise que fiz desta obra,
e a forma como a fiz, pode ser insuficiente, pobre no limite, mas o genial
romance de Mia Couto, além de ser um texto polissémico é de uma riqueza de
interpretação que pode levar o leitor a percorrer vários trilhos. Atendendo ao
facto, de que não pretendi fazer um resumo da história, nem um percurso
encadeado de factos, as minhas descrições das personagens e todos os excertos
que seleccionei serviram para validar aqueles que eu considero serem os
vectores fundamentais deste romance, como no início referi, e que o tornam numa
visão sóbria e inteligente da realidade africana, apresentada por um autor
moçambicano que ousa escrever um romance onde a ficção e a realidade se abraçam
tão profundamente, que se torna difícil dissociá-las, graças à sua mestria.
No fundo, A Confissão da Leoa é um mundo de contrastes, uma visão oposta de
leões e leoas, homens bicho e bichos gente, leões que não se matam com balas,
leoas que matam quem já morreu, um mundo onde a palavra é arma mas tem
adversário, como Naftalinda nota na sua luta isolada pelos direitos das
mulheres, um mundo onde a palavra se torna a arma de Mariamar, a arma que se
revela em confissão e que a faz partir de Kulumani apenas com o seu diário,
nada mais lhe basta. A palavra, essa sim, que tudo denunciou nesta caçada de onde as feras saíam dos homens que vão
devorando mulheres, até que, pela palavra, a leoa se confessa e mostra que tudo
neste mundo de homens leões, um mundo exibicionista, contrasta com os
verdadeiros ataques de uma leoa que se esconde, que na sua vingança de leoa mulher
tira partido do papel que, como mulher, lhe é dado, o da sombra. Assim nesta
caçada, os alvos serão aqueles homens, homens que de tanto atacarem, acabam
vítimas da sua fama.