quinta-feira, 25 de junho de 2015

Ensaio de Literaturas Africanas


Análise da obra A Confissão da Leoa de Mia Couto e das suas personagens como símbolos da realidade africana.





            Quando, em 2008 a empresa, para a qual Mia Couto trabalhava, enviou quinze jovens como oficiais ambientais de campo durante a abertura de linhas de prospecção sísmica em Cabo Delgado, região do Norte de Moçambique, começaram a ocorrer sucessivos ataques de leões a pessoas. Em quatro meses, as vítimas chegaram a cerca de vinte. Por iniciativa dos trabalhadores da empresa, foi sugerido à companhia petrolífera, encarregue das actividades de prospecção, que contratasse caçadores profissionais que eliminassem os leões apreciadores de carne humana, para que os ataques cessassem. Deslocaram-se dois caçadores de Maputo para a Vila de Palma, onde os ataques de leões se centravam.  A eles juntaram-se caçadores locais, pisteiros, velhos anciãos e durante dois meses, nada caçaram. Findos esses meses, mataram os leões assassinos. Contudo, não foi só essa espera que os caçadores recém-chegados enfrentaram, além da frustração de dois meses sem presas aniquiladas, tiveram de lidar com as histórias e os mitos das povoações e o que separa a imaginação da realidade. Quantos ataques teriam ocorrido mesmo? Que leões eram aqueles?  As dúvidas instalavam-se.
            Inspirado neste acontecimento real, Mia Couto escreve A Confissão da Leoa e poderia até cingir-se à estrutura e à história de um policial na busca de um assassino em série. Teríamos os ingredientes para tal. A história começa com o enterro de Silência, a última filha de Hanifa Assulua a ser, supostamente, atacada por leões e, para culminar, bastaria ao autor dar-nos o trilho que nos levaria ao covil do assassino pelas mãos do herói caçador, Arcanjo Baleiro.
            Mas A Confissão da Leoa é muito mais do que isso. Este romance é um retrato complexo e profundo da realidade africana nas suas diversas dimensões, personificado por um elenco de personagens extremamente bem caracterizadas que nos revelam a condição das mulheres em África, a forma como são secundarizadas, vítimas de abusos, escravas dos homens que as dominam, obrigando-as a trabalhar e a satisfazer todos os seus desejos. Aludindo ao título, também na vida selvagem é assim, os machos ficam deitados, espreguiçando-se enquanto as fêmeas tratam das crias e caçam para todos, sendo, no entanto, as últimas a comer do que sobra da fome e do capricho dos leões. Este elenco revela-nos igualmente como é a infância no continente africano, principalmente nos países em guerra, a pobreza, a escassez da educação e a importância dela como verdadeira arma para combater o que de pior existe, mostra-nos a visão ocidental de África, o oportunismo político e a corrupção dos governantes, a atitude dos agentes policiais que, em vez de protegerem os mais fracos, abusam deles e abraçam-se aos poderosos, apresenta-nos a repressão e tiraria masculina, a nobreza dos verdadeiros caçadores ao invés do abate indiscriminado e cobarde de animais, a importância dos rituais e a forma como as pessoas alimentam os mitos e vivem deles e a ténue barreira entre a realidade e a ficção.
            A história centra-se na aldeia de Kulumani, onde as vítimas, mulheres, são supostamente atacadas por leões. Uma empresa contrata um caçador profissional para eliminar os leões e restabelecer a paz, Arcanjo Baleiro. A acompanhá-lo vai Gustavo Regalo, escritor que fará a reportagem da caçada e a eles associa-se o administrador da região, Florindo Makwala que tenta colher dividendos políticos que o popularizem, além da sua esposa anafada, Dona Naftalinda, que na verdade é mais uma activista na defesa dos direitos das mulheres, como o demonstrará na defesa e indignação contra os abusos e morte da sua empregada Tinda, do que uma simples primeira-dama apagada, como o marido gosta de lhe chamar. Esporadicamente, surge também Maliqueto Próprio, o agente policial de Kulumani. Arcanjo Baleiro parte deixando para trás o seu irmão Rolando Baleiro num Hospital Psiquiátrico e a sua cunhada Luzilia, enfermeira naquele hospital e o grande amor da sua vida. Contudo, em Kulumani espera-o uma apaixonada distante, de há 16 anos aquando da caçada de um crocodilo naquela mesma aldeia, Mariamar. Mariamar é irmã de Silência, a última vítima dos leões a ser sepultada, é também irmã de Uminha e Igualita, igualmente já falecidas, e filha de Hanifa Assulua, a empregada que cuidará das instalações onde ficarão Arcanjo e Gustavo, e de Genito Serafim Mpepe, o pisteiro que ajudará Arcanjo na caçada. É também através do diário de Mariamar e das suas memórias que ficamos a conhecer personagens como o Padre Missionário Português, Manuel Amoroso e o seu avô, tio materno, Adjiru Kapitamoro. Destaco ainda uma personagem que recebe o caçador aquando da sua chegada à aldeia, que se trata de um ex-soldado cego.
            A Confissão da Leoa é-nos contada por dois protagonistas através dos seus diários, Mariamar e Arcanjo Baleiro, o caçador. É nesses diários que nos é desvendada toda a história do romance e os detalhes das personagens. Não pretendendo fazer um resumo do livro, focar-me-ei nos aspectos de cada personagem que ilustram os vectores que considerei serem caracterizadores da realidade africana e que tornam este livro num precioso contributo para um olhar atento e perspicaz dessa mesma realidade e que consagram Mia Couto um dos maiores autores lusófonos.
            Antes de me debruçar sobre cada personagem, e abordando a questão da fronteira entre a realidade e a ficção e forma como, por vezes, dificilmente se dissociam, deixo duas questões: Que leões eram aqueles? Porque matavam pessoas? Respondendo, deixarei alguns excertos do texto, pois estas dúvidas são transversais à leitura de todo o romance, daí o meu destaque:

            "Esta gente, porém, olha-me de soslaio. A pegajosa mão do cego volta a prender-me o braço:
            - Você traz uma espingarda? Para quê? Estes leões não se matam com bala."


            - Devia ser Tandi, a nossa empregada - corrige a primeira-dama. - Acontece, porém que ela foi...
            - Ela está incomodada - interrompe às pressas Florindo.
            - Incomodada? Que palavra é essa, marido? Incomodada?
            Makwala empurra com firme gentileza a esposa para o quintal. Lá fora, ainda discutem. Aos poucos, as vozes desvanecem-se. Parece terem-se afastado, mas os passos nervosos de Naftalinda confirmam que regressa, empenhada em nos deixar com a sua última palavra:
            - Só para que fique claro: incomodada quer dizer atacada, quase morta. E não foram leões que o fizeram. A maior ameaça, em Kulumani, não são as feras do mato. Tenham cuidado, meus amigos, tenham muito cuidado.


            Por isso, Gustavo segue como uma sombra os passos da empregada. Hanifa enche uma lata e água quando o escritor lhe pergunta sobre as circunstâncias que rodearam a morte da filha.
            - O que sucedeu naquela noite? Ela estava fora de casa, àquela hora?
            - O leão estava dentro.
            - Dentro de casa?
            - Dentro - repete, num quase inaudível sopro.


            O administrador tenta quebrar o gelo exclamando com despropositado entusiasmo:
            - O nosso caçador tem uma explicação para os ataques dos leões. Explique lá ao camarada Genito, ele precisa saber...
            Para mim era evidente: os camponeses tinham exterminado os animais pequenos, que constituem o alimento dos grandes carnívoros. Desesperados, estes passaram a atacar as aldeias. As pessoas são presas fáceis para os leões. Esta ruptura na cadeia alimentar - foi este o termo que usei com alguma petulância - era a razão do pouco usual comportamento dos leões.
            - Porcos - sentencia o pisteiro, enfrentando-nos.
            Num primeiro momento pensei que nos insultasse.
            - A culpa é dos porcos! - repete.
            (...) Genito Mpepe conclui, então:
            - Foram os porcos que ensinaram o caminho aos leões.
            Os porcos selvagens visitavam os quintais, atraídos pelas culturas em redor das casas. Os leões seguiram o seu rasto e invadiram, assim, um espaço que nunca antes tinham ousado transpor.


            O cego que nos perseguiu na noite da chegada também está na ronda dos entrevistados. (...) Continua descalço, envergando o mesmo camuflado militar.
            - Que exército o senhor serviu?  - pergunta o escritor.
            - Servi todos - responde prontamente. Apontando na minha direcção, acrescenta: - E lembro-me bem da voz daquele senhor.
            - Não é possível, a minha voz?
            - Desculpem, não quero ofender, mas queria perguntar: por que razão chamaram um caçador? Deviam chamar-me a mim que sou soldado.
            - Não entendo - argumenta o escritor - O que é que isto tem a ver com soldados?
            - Você não está a ver? Isto, meu senhor, isto não é uma caçada. Isto é uma guerra.
            A guerra é que explicava a tragédia de Kulumani. Aqueles leões não emergiam do mato. Eles nasceram do último conflito armado. Repetia-se, agora, a mesma desarrumação de todas as guerras: as pessoas tornaram-se animais e os animais tornaram-se gente. Durante as batalhas, cadáveres foram deixados no campo, nas estradas. Os leões comeram-nos. Naquele preciso momento, os bichos quebraram o tabu: começaram a olhar as pessoas como presas. O cego, enfim, encerrou o longo discurso:
            - Já não somos donos, nós os homens. Agora, eles mandam no nosso medo.
            Depois discorreu com eloquência e sem interrupção:
            - Aconteceu o mesmo no tempo colonial. Os leões fazem-me lembrar os soldados do exército português. Esses portugueses tanto foram imaginados por nós que se tornaram poderosos. Os portugueses não tinham força para nos vencer. Por isso, fizeram com que as suas vítimas se matassem a si mesmas. E nós, pretos, aprendemos a nos odiar a nós mesmos.


            Inesperadamente, uma voz feminina se faz escutar, herética e imprevista:
            - A caçada devia ser outra. Os inimigos de Kulumani estão aqui, estão nesta assembleia!
            A intervenção alarma todos os presentes. Surpresos, os homens encaram a intrusa. É Naftalinda, a esposa do administrador. E ela está desafiando as mais antigas interdições: as mulheres não entram na shitala. E muito menos estão autorizadas a emitir opinião sobre assuntos desta gravidade. O administrador acorre a retificar o incidente:
            - Camarada primeira-dama, por favor, este é um encontro privado...
            - Privado? Não vejo nada de privado, aqui. E não me olhem assim que não tenho medo. Sou como os leões que nos atacam: perdi o medo dos homens.
            - Naftalinda, por favor, estamos reunidos aqui segundo a tradição antiga - solicita Makwala.
            - Uma mulher foi violada e quase morta, nesta aldeia. E não foram leões que o fizeram. Já não há lugar proibido para mim.
            Evolui com arrogância entre os anciãos, sorri com desdém para o administrador e detém-se, por fim, à minha frente:
            - Você voltou a Kulumani, Arcanjo Baleiro? Pois dê caça a estes violadores de mulheres.
            - Mamã, há que pedir a palavra - adverte Florindo Makwala.
            - A palavra é minha, não preciso pedir a ninguém. Estou a falar consigo, Arcanjo Baleiro. Aponte a sua arma para outros alvos.
            - Que conversa é esta, esposa?
            - Fingem que estão preocupados com os leões que nos tiram a vida. Eu, como mulher, pergunto: mas que vida há ainda para nos tirar?




            Hanifa vem chamar-me, alta noite. Está tão alarmada que desato a segui-la sem mudar de roupa. (...)
            - Os leões chegaram a minha casa.
            Desde que anoiteceu eles rondam a aldeia. Hanifa tinha-os escutado ao longe.
                  - Não ouvi nada - confesso
            (...) Num instante, estamos no pátio da casa do casal Mpepe.
            - Não acenda a lanterna, senhor escritor - pede a mulher, em surdina.
            - E como é que vejo onde piso? - pergunta Gustavo.
            - Calem-se, os dois! E você, Hanifa, chame imediatamente, Genito! - ordeno.
            - Ele está a dormir.
            De súbito, Hanifa aponta para uns arbustos que se agitam e incita:
            - Dispare, são os leões! Dispare!  
            (...)
            - Não dispare, sou eu, Genito!
            O pisteiro tinha ido comprar aguardente na povoação vizinha. Ergue uma garrafa como prova.
            - Agora vá para dentro, Hanifa. Sabe que não a quero aqui, de noite.
            - A sua esposa alertou-nos - justifica o escritor  - porque lhe parecia que os leões andavam por aqui.
            (...)
            - Hanifa sabia que era eu. Ela sabia que era eu que estava a chegar.
            Cessando este conjunto de excertos que quis destacar acerca da fronteira entre a realidade e a ficção, sobre quem são de facto estes leões, passo a falar de cada uma das personagens e da forma como cada uma delas nos evidencia os aspectos que considerei fundamentais no quotidiano africano.

            Arcanjo Baleiro - É o caçador profissional encarregue de matar os leões que atacam a povoação de Kulumani. Oriundo de uma família de caçadores, já o seu pai, Henrique Baleiro, o era. Aos 10 anos, fica orfão da mãe, Martina Baleiro, vítima de uma estranha doença, e, pouco tempo depois, do pai, vítima de um acidente, pensava. O seu irmão, Rolando Baleiro, tinha disparado contra o seu pai.  A polícia levou-o e desde então vive num Hospital Psiquiátrico, tendo sido considerado louco. Desde aí passou a ter insónias e pesadelos todas as noites. Arcanjo é apaixonado por Luzilia, sua cunhada, que trabalha no Hospital Psiquiátrico onde o irmão ficou internado e que sempre cuidou dele.
            Venerava o pai "Meu pai era um homem que enchia o mundo, o pé dele entrava em casa e sentíamos o balanço do seu peso como se, de repente, estivéssemos num pequeno barco." e talvez dessa veneração venha a sua postura e dignidade quanto à caça. Não caçava a qualquer preço, quando chegou a Kulumani, desfez todas as armadilhas que tinham construído para os leões.  É um caçador em extinção:

            Sou o único que resta, (...) Não tarda, afirmo, que não sobrem animais. Porque esses falsos caçadores não poupam crias nem fêmeas grávidas, não respeitam os períodos de defeso, invadem os parques e as reservas. Gente poderosa fornece-lhes as armas e tudo, para esses matadores, se resume à sagrada trilogia: arma, dinheiro, poder.


           
            Maliqueto Próprio - É o polícia de Kulumani que em vez de defender a lei e proteger os indefesos, faz o oposto, exercendo a sua tirania. Por duas vezes, tentou abusar e violar Mariamar. Na primeira vez, foi impedido por Arcanjo, na segunda, Mariamar conseguiu defender-se sozinha.

            - Você deve-me alguma coisa, Mariamar. Não se lembra? Aqui é um bom lugar para cobrar o que me deve.
            Vai-se libertando da roupa, enquanto se aproxima, rastejante e baboso.






            Genito Mpepe - Pisteiro que auxilia nas caçadas é um alcoólico e um déspota que maltrata a mulher, a obriga a trabalhar e que, durante anos abusou das filhas.

            O crime foi outro: durante anos, meu pai, Genito Mpepe, abusou das filhas. Primeiro aconteceu com Silência. Minha irmã sofreu calada, sem partilhar esse terrível segredo. Assim que me despontaram os seios, fui eu a vítima. Ao fim das tardes, Genito migrava de si mesmo por via da lipa, a aguardente de palmeira. Já bem bebido, entrava no nosso quarto e o pesadelo começava.


            Hanifa Assulua - Esposa de Genito e mãe de Mariamar, Silência, Uminha e Igualita é uma mulher amargurada e resignada. Faz todas as tarefas domésticas, cuida da casa e habituou-se a servir os homens. Por um lado odeia o marido, mas não o consegue confrontar, chegando mesmo a culpar Mariamar pelos abusos de que foi vítima.

            Sem qualquer reacção, fitei-a saltando sobre mim, agredindo-me com socos e pontapés, insultando-me na sua língua materna. O que ela dizia, entre babas e cuspos, era que a culpa era minha. Toda a culpa apenas minha.

           
            Gustavo Regalo - É o escritor que acompanha Arcanjo na caçada e pretende escrever um livro de sucesso, que obtenha lucro com esta viagem. Representa a visão ocidental de África, uma curiosidade, por vezes indelicada, que não respeita a dignidade dos povos e dos territórios.

            Olho com cinismo para aquele comércio de interesses. O escritor é uma ave de rapina: pede relatos da guerra. Os aldeões esperam alguma benesse. Um donativo, no linguajar local. Como pode alguém criticar-me pela minha actividade profissional? Sou um praticante da caça? Pois, o escritor é um necrófago. Embarcou nesta viagem para debicar desgraças, por entre sobreviventes cujo luto é o silêncio.
            Raspar as feridas do passado: é isso que Gustavo executa ao esgravatar memórias da guerra civil.


            Florindo Makwala - É o administrador, um político que tenta ser popular e ostentar o seu estatuto e poder. Quer acompanhar a caçada para obter dividendos e aprovação dos seus superiores que querem uma solução para aquela matança. A certa altura, na ausência de resultados, chega mesmo a sugerir forjar relatórios falsos com resultados sobre as caçadas. Quando matam um leão, pede que o fotografem junto da carcaça, por puro exibicionismo. A sua mulher dizia acerca dele: "Tenho pena de Florindo. É um palhaço. Pensa que as pessoas o veneram. Ninguém o respeita, ninguém o ama."
           
            - Pois faça como quiser. A verdade, porém, é só uma: seja a pescar, a caçar, o senhor tem que eliminar esses leões. Faz parte das minhas metas políticas.
            Os comedores de gente são para ele um assunto político.
            - Os meus superiores - relembra com ênfase - deram instruções bem claras: o povo vota, os bichos não. Há que eliminar rapidamente estes motivos de queixa das comunidades - e retoma a ordem sumária: - Tem que os matar.


            Dona Naftalinda - É a esposa de Florindo, que a trata como a primeira-dama, que, como Mariamar diz, é de uma terra sem damas. Talvez por isso mesmo, esta senhora muito gorda não se encoste ao título e enfrente tudo e todos na defesa dos direitos das mulheres, é ela que denuncia o que aconteceu à sua empregada Tandi, é ela que luta pela mudança. Chega mesmo a despir-se e a servir de isco para os leões, tendo sido atacada por uma leoa, gesto que fez com que o marido abandonasse a política e voltasse a ser professor, emendando-se.

            Em contraste com o marido, Naftalinda está desfeita. A certo momento, quer tomar da palavra. O choro, porém, impede-a de falar. Recompõe-se, enxuga a lágrima e, aos poucos, assume a gloriosa pose de exaltação:
            - Os leões cercando a aldeia e os homens continuam a mandar as mulheres vigiarem as machambas, continuam a mandar as filhas e as esposas coletar lenha e água de madrugada. Quando é que dizemos não? Quando já não restar nenhuma de nós?
            Esperava que as demais mulheres a seguissem naquele convite à revolta. Mas elas encolhem os ombros e afastam-se, uma por uma. A primeira-dama é a última das mulheres a abandonar a cerimónia. Por dentro, ela sente-se a derradeira das mulheres.


            Rolando Baleiro - Irmão de Arcanjo é casado com Luzilia, foi declarado louco por ter assassinado o pai num suposto acidente, vivendo o resto da sua vida num Hospital Psiquiátrico onde a conheceu. Na última visita, do irmão que lhe anunciou que ia fazer a sua última caçada, mostrou o desejo de que a sua esposa o acompanhasse, mesmo sabendo que Arcanjo a amava. Mais tarde, Luzilia acabaria por ir ter com Arcanjo levando-lhe uma carta e o pedido urgente para que este regressasse a Maputo, a fim do irmão lhe poder dizer algumas coisas antes de morrer. Nessa carta, Rolando confessa que matou o pai propositadamente e que a loucura, além de ter sido o seu álibi, foi a sua absolvição. O motivo que levou Rolando a matar o pai será desvendado pela própria Luzilia.

            Sim, fui eu que matei o nosso pai. Matei-o e voltarei a matá-lo sempre que ele volte a nascer. Obedeço a ordens. Essas ordens foram-me dadas sem palavras. Bastou o olhar triste da minha mãe. Não tenhas pena de mim, meu irmão. A loucura, primeiro, foi o meu álibi. Tornou-se depois, a minha absolvição. A nossa mãe sempre avisou: a bala mata nas duas direções. Ao matar o velho Baleiro eu mesmo me suicidei. Certa vez depois do falecimento da nossa mãe, tu disseste: quem me dera morrer. Pois eu te digo, agora. Não é a morte que confere ausência. O morto ainda está presente: todo o passado lhe pertence. O único modo de deixarmos de existir é a loucura. Só o louco fica ausente.


            Luzilia - É enfermeira e mulher de Rolando, trata dele há anos, conhece-o como ninguém e tem-lhe uma lealdade enorme, tanto que, quando Arcanjo lhe entregou uma carta a declarar-se, não a leu. Foi Rolando que descobriu a carta na sua mala e a leu para Luzilia. Quando Luzilia vai ter com Arcanjo para entregar-lhe a carta do irmão e pedir-lhe que regresse a Maputo antes que o irmão morra, revela-lhe a causa da morte da sua mãe e acaba por indiciar-lhe também que nunca fizera amor com Rolando. No fundo, a lealdade e o respeito dela por Rolando eram imensos. Genuína bondade. Embora amasse os dois irmãos, foi sempre leal a Rolando e mesmo quando este desejou que ela fosse com o irmão à caçada, ela recusou-se. Acabou por ir, forçada pelas circunstâncias.

            - Há coisas que te devo revelar. Primeiro, sobre a tua mãe, sobre a morte dela.
            - Eu sei o que aconteceu. Ela estava doente.
            - A tua mãe morreu de Kusungabanga.
            - É o nome de uma doença?
            - Digamos que sim. Uma doença que mata os outros, os que não estão doentes.
            No momento não entendi. Mas depois Luzilia explica: na língua de Manica, o termo Kusungabanga significa "fechar à faca". Antes de emigrar para trabalhar há homens que costuram a vagina da mulher com agulha e linha. Muitas mulheres contrarem infecções. No caso de Martina Baleiro, essa infecção foi fatal.
            - Rolando sabia. Foi por isso que matou o pai. Não foi um acidente. Ele vingou a morte da mãe.



            O ex-soldado cego - Este cego, antigo soldado, tal como Naftalinda chega a dizer a Arcanjo, é um dos poucos que ainda mostra ter alguma humanidade naquele local. Marcado pelas feridas da guerra, é um profundo conhecedor da realidade, de como a guerra consegue mutilar as pessoas, os sonhos, os ideais. Tal como o demonstra o excerto que anteriormente transcrevi da sua entrevista na shitala, que pode ser lido no início da página cinco. Tem um discurso duro, directo, não há espaço para eufemismos, para falsos pacifismos, sabe como a vida escasseia num lugar onde a morte é fácil.

            - Você traz uma espingarda? Para quê? Estes leões não se matam com bala.
            O vigor com que me persegue faz-me duvidar da autenticidade da cegueira. Essa suspeita  agrava-se quando me agarra com o desespero de um afogado e me pergunta:
            - O senhor vê-me?
            - Por que pergunta?
            -A nós, os de Kulumani, ninguém nos vê (...)



            Adjiru Kapitamoro - Por tradição em Kulumani, o tio materno mais velho é tratado como avô. Kapitamoro é o avô de Mariamar que tanto ama a neta e a tenta proteger das agressões e hostilidade dos pais. É ele que quando a encontra imobilizada dos membros inferiores a leva até ao Padre Manuel Amoroso, missionário português responsável pela Missão Portuguesa onde Mariamar viveu nos dois anos seguintes até ficar curada. Era um velho sábio, quando foi buscar a neta à Igreja perguntou ao padre se lhe tinha ensinado a dar pontapés. O padre, escandalizado, perguntou se isso era coisa que se ensinasse a uma menina, ao que Kapitamoro respondeu "Exactamente, padre. Exactamente por ser menina é que ela deve aprender a dar murros, dentadas, pontapés...". Isto numa clara referência ao facto de Mariamar, tal como outras meninas, ter sido vítima de abusos sexuais e merecer saber defender-se e ser defendida. Kapitamoro era um antigo caçador que, um dia, por acidente, matou um homem e teve de abandonar a caça, tornando-se num pisteiro, por se recusar a participar num ritual que o redimisse da morte do homem.  De uma enorme nobreza, tornou-se um velho contador de histórias, atento às tradições, aos mitos e ia até a shitala à noite, levando Mariamar consigo e com orgulho, o orgulho de quem também tinha ensinado a neta a ler.

            Às vezes puxava-me a mim para o centro e proclamava:
            - Você, Mariamar, é que vai contar histórias.
            - Mas eu sou uma menina, nunca cacei, nunca irei caçar...
            - Todos já caçámos, todos já fomos caçados - argumentava ele.

            Mariamar - É a grande leoa da história, com uma infância sofrida, vítima dos abusos sexuais do pai, da indiferença e desprezo da mãe, apenas no avô encontrava o carinho que não recolhia no resto da família. O avô tinha-a ensinado a ler e mostrou-lhe o valor da educação "Num mundo de homens e caçadores, a palavra foi a minha primeira arma.".
            É ela que nos mostra também como é a vida das crianças em África, principalmente quando se está em guerra, aquando da sua paralisia nas pernas:

            Na infância, o corpo tem um serviço único: brincar. Mas não em Kulumani. Os meninos da nossa aldeia pediam às pernas que os fizessem fugir, à frente do fogo, mais velozes que as balas, Era o tempo em que as armas varriam as nossas povoações. (...) Sempre me perguntei se em Kulumani existiam crianças. Pode-se chamar de criança a uma criatura que lavra a terra, corta a lenha, carrega água e, no fim do dia, já não tem alma para brincar?


            Mariamar apaixonou-se por Arcanjo de quem ficou grávida, esperou por ele durante anos, perguntando-se o porquê de ele a esquecer. Naquela altura Arcanjo bebia muito e fora há 16 anos atrás que tudo ocorrera, Arcanjo nem soubera da gravidez dela. Contudo, devido aos sucessivos abusos sexuais do pai, Mariamar perdeu o filho e foi considerada infértil.
            Virá a confessar, no final, que era ela a leoa e que se vingou, a vítima que eliminou as outras vítimas, incluindo as suas irmãs.

            E aqui deixo escrito com sangue de bicho e lágrima de mulher: fui eu que matei essas mulheres, uma por uma. Sou eu a vingativa leoa. A minha jura permanecerá sem pausa nem cansaço: eliminarei todas as remanescentes mulheres que houver, até que, neste cansado mundo, restem apenas homens, um deserto de homens solitários. Sem mulheres, sem filhos, acabará assim a raça humana. (...) E nunca mais me pesará culpa como sucedeu da primeira vez que matei alguém. Nessa altura, eu era ainda demasiado pessoa. Sofria dessa humana doença chamada consciência. Agora já não há remorso. Porque, a bem ver, nunca cheguei a matar ninguém. Todas essas mulheres já estavam mortas. Não falavam, não pensavam, não amavam, não sonhava. De que valia viverem se não podiam ser felizes?


            Porventura, a análise que fiz desta obra, e a forma como a fiz, pode ser insuficiente, pobre no limite, mas o genial romance de Mia Couto, além de ser um texto polissémico é de uma riqueza de interpretação que pode levar o leitor a percorrer vários trilhos. Atendendo ao facto, de que não pretendi fazer um resumo da história, nem um percurso encadeado de factos, as minhas descrições das personagens e todos os excertos que seleccionei serviram para validar aqueles que eu considero serem os vectores fundamentais deste romance, como no início referi, e que o tornam numa visão sóbria e inteligente da realidade africana, apresentada por um autor moçambicano que ousa escrever um romance onde a ficção e a realidade se abraçam tão profundamente, que se torna difícil dissociá-las, graças à sua mestria.
            No fundo, A Confissão da Leoa é um mundo de contrastes, uma visão oposta de leões e leoas, homens bicho e bichos gente, leões que não se matam com balas, leoas que matam quem já morreu, um mundo onde a palavra é arma mas tem adversário, como Naftalinda nota na sua luta isolada pelos direitos das mulheres, um mundo onde a palavra se torna a arma de Mariamar, a arma que se revela em confissão e que a faz partir de Kulumani apenas com o seu diário, nada mais lhe basta. A palavra, essa sim, que tudo denunciou nesta caçada  de onde as feras saíam dos homens que vão devorando mulheres, até que, pela palavra, a leoa se confessa e mostra que tudo neste mundo de homens leões, um mundo exibicionista, contrasta com os verdadeiros ataques de uma leoa que se esconde, que na sua vingança de leoa mulher tira partido do papel que, como mulher, lhe é dado, o da sombra. Assim nesta caçada, os alvos serão aqueles homens, homens que de tanto atacarem, acabam vítimas da sua fama.

2 comentários:

  1. Eu prefiro os livros mais poéticos de Mia Couto. Este livro-denúncia usa os leões como pretexto. Mas não há dúvida que o autor sabe do que fala, encadeia como ninguém os factos e dá-nos essa lição sobre o mundo das mulheres africanas, o sub segundo sexo.

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  2. Eu gosto do Mia, simplesmente! :) Mas gosto muito deste livro, sem dúvida.

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