segunda-feira, 22 de julho de 2013

Fahrenheit 451, a temperatura a que o papel do livro se incendeia e arde...




            E se, de repente, o mundo virasse um sítio superpovoado, onde as crianças vão à escola e não aprendem a ler, onde a história e as línguas, lhes são vedadas? E se, de repente, o conhecimento tivesse fim, as pessoas mergulhassem num torpor onde só consomem televisão, onde não existem mais alpendres nas casas onde as famílias se possam sentar e conversar?  E se, de repente, devido à tecnologia, exploração em massa e à pressão das minorias, os livros passassem a ser proibidos? E se, os bombeiros  deixassem de ser soldados da paz que combatem o fogo, passando a ser incendiários que queimam livros e casas de quem os possui?
            É disto, que fala este livro. Apesar de não ser um leitor assíduo de ficção, ao me ter sido recomendado por uma amiga, ser das letras como eu, não lhe pude resistir. E ao não lhe resistir, fui encontrando ao longo destas páginas várias pausas para reflexão. Não será que já acontecem alguns destes fenómenos? Não presenciamos já este torpor nalgumas pessoas? E os livros, não serão de facto as grandes armas temidas do homem letrado?
            Ao lermos Fahrenheit 451 de Ray Bradbury entramos numa sociedade que vive uma ditadura de felicidade. Ninguém se pode incomodar, ninguém pode pensar, reflectir, sofrer. Tudo o que vá nesse sentido é uma maçada. Daí que a poesia e a filosofia tenham sido banidas, quais fontes heréticas de desespero e agonia. "Não deixes que a torrente de melancolia e filosofia lúgubre inundem o nosso mundo."

                  - Deves compreender que a nossa civilização é tão vasta que não podemos perturbar as nossas minorias. Pergunta a ti mesmo. Que queremos neste país, acima de tudo? As pessoas querem ser felizes, não é verdade? Não ouviste isso toda a vida? Quero ser feliz, dizem as pessoas. (...) Se não queremos um homem politicamente infeliz, não lhe damos duas respostas a uma pergunta que o preocupe; damos-lhe uma. Melhor ainda, não lhe damos nenhuma. Deixamos que se esqueça que existe uma coisa como a guerra. (...) Paz, Montag. Temos de dar concursos às pessoas que elas ganhem, recordando as letras das canções mais populares ou os nomes das capitais dos estados ou quanto cereal produziu Iowa no ano passado. Temos de as encher com dados não combustíveis, atravancá-las com tantos "factos" até se sentirem empanturradas, mas absolutamente "brilhantes" com informação. Então, sentirão que estão a pensar, terão uma sensação de movimento sem se moverem. E ficarão felizes, porque os factos deste tipo não mudam. Não se lhes pode dar matéria escorregadia como filosofia ou sociologia para relacionarem as coisas. Isso causa melancolia.


            E assim, com uma sociedade afastada do pensamento e da realidade, cria-se uma felicidade artificial que em nada toca naquilo que de mais genuíno existe na felicidade.
            Além disso, o comportamento das pessoas modifica-se. As pessoas tornam-se peneiras, por não lerem e não reflectirem, pelo seu afastamento dos livros, não conservam muita informação, memorizam cada vez menos. Tornam-se autómatos devido ao consumo excessivo de televisão - " O televisor é "real". É directo, tem dimensão. Diz-lhe aquilo que deve pensar e introduz-lo à força. Deve ter razão. Parece tão certo. Leva-o tão depressa a chegar às conclusões dele que a sua mente nem tem tempo de protestar."
            Perde-se um lado humano fundamental na vida, a generosidade, o carinho, os afectos e proliferam pessoas insensíveis, que buscam os incessantes divertimento e despreocupação, falando friamente e sem consciência, ou com uma muito distorcida:

- Sabe que não tenho filhos! Ninguém no seu juízo perfeito, só Deus sabe, teria filhos! - disse a Sr.ª Phelps, (...)
- Eu não diria isso - disse a Sr.ª Bowles - Tive dois filhos de cesariana. Não vale a pena passar por aquela agonia por causa de um bebé. O género humano deve reproduzir-se, vocês sabem, a raça deve continuar. Além disso, às vezes parecem-se connosco, e isso é agradável. Duas cesarianas deram resultado, sim, senhor. Oh, o meu médico disse, as cesarianas não são necessárias; tem ancas para isso, tudo está normal, mas eu insisti.
- Com cesarianas ou sem elas, os filhos são ruinosos; estás louca - disse a Sr.ª Phelps.
- Meto as crianças na escola nove dias em dez. Suporto-as quando vão a casa três dias por mês; não é mau de toda. Metem-se na "saleta" e roda-se o interruptor. É como lavar a roupa: mete-se a roupa e baixa-se a tampa- A Sr.ª Bowles riu-se à socapa. - Tão depressa me dão pontapés como beijam. Graças a Deus também posso dar pontapés.


            E assim prossegue a vida da maioria das pessoas nesta história, com discursos como este. Ao falar deste livro, decidi não falar sobre o desfecho e não identificar as principais personagens. Decidi partilhar pontos de reflexão. E daí, pode ser que advenha o desejo de alguém querer ler este livro, onde para quem gosta de ler, para quem gosta do livro, do seu cheiro, para quem gosta de escritores, de pensadores, se reverá em muitas das páginas.

3 comentários:

  1. Bom,bom,bom...essa coisa a que o livro chama felicidade será um imenso tédio cortado em fatias pela novidade fácil e que não o anula.

    Pode que muita gente - e nós mesmos - sejamos por vezes esses seres meio acéfalos na busca de prazer e pensamento prêt-a-porter. Mas não o somos sempre.

    Tal como há-de haver quem combata a reflexão, vão manter-se de pé os homens. Porque, é aristotélico, somos animais racionais. E, se mais não for, que seja por não podermos atraiçoar a espécie no seu todo :)

    Nunca chegaremos a esse estado global, Francisco. Eu creio no poder da genética. E também na ética. Temos de acreditar em alguma coisa. Porque não nos homens? :))

    Um beijinho. E boas férias!!!

    ResponderEliminar
  2. Just me :)

    Sabia de antemão, que iria gostar do seu comentário neste post. Nem mais, a novidade fácil não anula o tédio, é antes um placebo dado às pessoas.

    Fala da genética e da ética e uma das personagens, o chefe dos bombeiros que alerta para todos os perigos dos livros, fala do perigo da hereditariedade. É tramada e indomável...

    Eu também acredito que a reflexão, a ética, o conhecimento poderão trazer as melhores coisas, mas este livro faz-nos pensar em coisas muito importantes e de uma pertinência incrível.

    Beijinho e obrigado pelo comentário. :)

    ResponderEliminar
  3. Oh, Francisco eu gosto de falar consigo, escrevendo:) é um prazer ver o que e como pensa, o que se entretém a ler, os poemas que gosta. Coisas.
    E aprendo consigo, Francisco. Não o aprendo só a si, aprendo o mundo pelos seus olhos. Lembra-se dos valores? as coisas são as mesmas mas não vemos nem sentimos as mesmas coisas. Na diferença mora a riqueza incalculável de sermos homens.

    É. A hereditariedade é tramada e pouco se contraria, penso. Mas que haja uma hereditariedade da espécie é bom. E, curiosamente, já espero nela. Antes esperava na hereditariedade individual. Ainda espero, nem que seja em apenas alguns homens. Mas tenho de acreditar na espécie e que ela sobrevive na sua essência pensante reflexiva e emocional. Ou será a morte do homem e não acontece o que Nietzshe previu: o superhomem. Pelas suas palavras sobre o livro não seria bem um homem, mais um animal amestrado ao prazer fácil. Não me agrada, confesso.
    Temos de continuar a acreditar, Francisco. Kant tinha razão. Mesmo que não sejamos kantianos:))

    ResponderEliminar