Mais uma vez a
genialidade de Jack London é evidente no terceiro conto que pude ler do autor,
depois de a fogueira e burlado, Um bife é um conto sublime, no qual London ousa ser pioneiro na
abordagem do tema do pugilismo na Literatura. Além de que é dos melhores textos
que já li no que diz respeito à escolha do título, como oportunamente poderão
ver.
Um bife
é mais do que um conto sobre o mundo do boxe, é a descrição da luta cruel entre
a velhice; sábia e cansada e a juventude; insaciável e irreverente.
Surge-nos Tom
King, um veterano lutador de boxe no fim da carreira, que numa noite de
combate, está em casa, a jantar alguns pedaços de pão, mergulhados num molho
engrossado a farinha, que a mulher tinha conseguido cozinhar para lhe mitigar a
fome. Os seus dois filhos foram deitados mais cedo, para que o sono lhes
fizesse esquecer a sensação de ardor que lhes assaltaria o estômago.
Apetecia-lhe um bife, algo que a sua mulher não tinha conseguido arranjar para
o jantar. No final da carreira do marido, já não lhe fiavam nem um bife, todos
sentiam que no próximo combate, Tom King perderia e não traria dinheiro nenhum
no bolso que lhe permitisse pagar as dívidas.
King embora fosse
tranquilo fora dos combates, tinha a aparência rude e sedutora de um homem do
ringue:
Era um homem entroncado, de aspecto corpulento, e de
aparência particularmente atraente, embora não em excesso. (...) Tinha a cara
típica do pugilista profissional, de alguém que passara muitos anos em cima dos
ringues e que por isso adquirira e acentuara todos os sinais característicos do
animal disposto à luta. (...) Embora tudo nele fosse de uma animalidade pura,
os olhos eram a característica que mais acentuava essa aparência. Sonolentos,
leoninos, faziam lembrar os olhos de uma fera."
Era uma fera
marcada pelos sucessivos anos de luta, com o nariz moldado pelas duas vezes em
que fora partido e pelos inúmeros socos recebidos, os nós dos dedos deformados
e as veias dos braços salientes, devido ao sangue fervilhante que as tinha
percorrido à máxima pressão.
Nessa noite, Tom King iria defrontar Sandel, um Neozelandês
já com alguma fama mas que veria neste combate, a hipótese de a aumentar, caso
vencesse o velho King.
Saiu de casa
despedindo-se da mulher, que lhe dissera "Tens de ganhar!". Tinha
sido um ano de seca na Austrália e tornara-se difícil encontrar algum trabalho
que lhe ajudasse a pagar as contas. E tendo em conta que tinha a mulher e dois
filhos para sustentar, dirigiu-se ao combate com a sentença de que caso
ganhasse o combate, iria receber a quantia de 30 libras, o que lhe permitiria
pagar as dívidas e guardar o que sobrasse ou caso perdesse, não ganharia um
único cêntimo.
Enquanto fazia a
caminhada de três quilómetros até ao local do combate, King pensava nos seus
tempos de glória, na sua juventude, de como o dinheiro fácil e a fama o moveram,
lamentou-se de não ter aprendido outro ofício e lembrou-se até do velho
Stowsher Bill, que tinha derrotado num combate e que chorara como uma criança, após
a luta, no vestiário.
Dali até ao Gayety eram
uns bons três quilómetros e, enquanto caminhava, lembrou-se de como nos bons
tempos - certa vez fora campeão de pesos pesados de Nova Gales do Sul - ia para
os combates de táxi, geralmente pago por algum aficionado pelo prazer de o
acompanhar. Tommy Burns e aquele preto ianque, Jack Johnson... iam de
automóvel. E ele a pé! E, como era bem sabido, caminhar três quilómetros não
era propriamente a melhor maneira de se preparar para um combate. Estava velho
e o mundo não queria saber de velhos. (...) Quem lhe dera ter aprendido um
ofício! (...) Tudo tinha sido tão fácil! Dinheiro a rodos... lutas simples e
gloriosas... períodos de descanso e boa vida entre os combates... um séquito de
adoradores ansiosos, palmadas nas costas, apertos de mão, os aficionados
desejosos de lhe pagar uma bebida em troca do privilégio de cinco minutos de
conversa... e a fama, o público delirante, os finais apoteóticos, o árbitro a
gritar "Ganhou King!" e, no dia seguinte, o seu nome nas colunas
desportivas. (...) Ele era a Juventude, pujante; e eles eram a Velhice, em
declínio. (...) Lembrou-se do dia em que vencera o velho Stowsher Bill (...) e
de como, já no vestiário, Bill tinha chorado como uma criança. Talvez tivesse
também rendas atrasadas para pagar. Talvez tivesse em casa mulher e dois
filhos. E talvez Bill, nesse dia do combate, também tivesse sentido vontade de
comer um bife.
Chegou ao clube e
encontrou Sandel, o seu jovem adversário. Já no ringue, não pôde deixar de
fitar a aparência do rapaz: "O seu rosto, forte e atractivo, tinha a
coroá-lo uma farta cabeleira loura e encaracolada, enquanto o pescoço grosso e
musculado fazia adivinhar um corpo magnífico.".
Tem início o
combate e Sandel revela-se rápido e astuto, disparando socos rápidos e
certeiros em Tom King, arrancando gritos à plateia. Mas King, não se deixa
impressionar, era sábio e conhecia a estratégia do rapaz.
Percebia que aqueles
socos eram demasiado rápidos e certeiros para serem perigosos. Era evidente que
Sandel tencionava acabar quanto antes. Era de esperar, era próprio de um jovem
esbanjar o seu esplendor e excelência em ataques selvagens e investidas
furiosas, esmagando o oponente com o seu desejo ilimitado de glória e poder.
Assim continuou a
luta, com o veterano a aguentar, pacientemente, os golpes do jovem Sandel,
sabendo que com eles, a energia dele se dissipava.
Conhecia o seu
ofício, e conhecia a Juventude, agora que ela o abandonara. Não havia nada a
fazer enquanto o outro não perdesse algum ímpeto - foi o seu pensamento, e
sorriu para si próprio (...) Sandel tinha de gastar a efervescência da
Juventude para a discreta Idade ousar retaliar.
Com King a
limitar-se a aparar golpes e socos, muitos lhe perguntavam porque não lutava,
se tinha medo de Sandel. Enquanto que outros, diziam que tinha os músculos
presos, que já não se conseguia mover mais depressa. O que todos eles
desconheciam era que todo este jogo, toda esta estratégia, eram a sabedoria
refinada e amadurecida de Tom King, que geria ao milímetro a economia do jogo,
consciente do seu estado, das energias que não podia gastar desnecessariamente
e de como podia induzir o seu adversário a desperdiçar forças.
Sandel percorreu
integralmente três quartos da distância, ansioso por recomeçar; mas King
contentou-se em percorrer a distância mais curta. Era mais adequado à sua
política de economia. Não estava bem treinado, não comera o suficiente, e cada
passo contava. Além disso, já caminhara três quilómetros para chegar ao clube. (...)
Sandel esforçava-se por
impor um ritmo rápido, mas King, mais conhecedor do ofício, recusava-se a
fazer-lhe a vontade. O pugilista veterano sorriu com patética nostalgia e
continuou a poupar energia com um zelo que só a Velhice é capaz. Sandel era a
Juventude, e esbanjava a sua energia com o abandono liberal da Juventude. A
King pertencia o domínio do ringue, a sabedoria acumulada ao longo de dolorosos
combates. (...) No início de cada assalto, King demorava-se no seu canto,
forçando o oponente a avançar e a percorrer uma distância maior. No fim de cada
assalto, orientava o combate de maneira a deslocá-lo para mais perto do seu
canto, de forma a poder sentar-se logo.
E de repente, sem
que se esperasse Tom King foi aproveitando todas as vantagens a seu favor e
abandonou a sua suposta timidez inicial, enfraquecendo o seu adversário, ao
desferir-lhe alguns golpes duros, que entusiasmaram e surpreenderam o público.
E Tom King, que durante
meia hora poupara a sua energia, agora gastava-a prodigamente num grande
esforço que sabia ser capaz de fazer. Era a sua única oportunidade... agora ou
nunca. As forças abandonavam-no, e só tinha esperança, de antes de as perder
por completo, conseguir derrotar de vez o oponente.
Só que cada golpe
dado, era um esforço que o enfraquecia e apesar de toda a sua estratégia,
Sandel não se esgotara como King esperara. Pelo contrário, King ia ficando cada
vez mais debilitado e o esforço que empreendia era imenso.
E enquanto caminhava a
bater e a fazer força, calculando friamente o peso dos seus golpes e a
qualidade dos danos infligidos, percebeu como era difícil pôr Sandel
inconsciente. (...) Sandel oscilava e cambaleava, mas Tom King sentia as pernas
a contraírem-se numa cãibra e os nós dos dedos a protestarem. No entanto,
encontrou forças suficientes para desferir socos violentos, cada um dos quais
percorria de dor as suas mãos torturadas. (...) Os seus murros eram certeiros,
mas já sem ímpeto, e cada golpe era o resultado de um enorme esforço de
vontade. As pernas pesavam-lhe como chumbo e arrastava-as visivelmente;
entretanto a claque de Sandel, animada,
por este sintoma, começava a lançar-lhe gritos de encorajamento.
Com estes gritos
de encorajamento, King lançou-se num derradeiro esforço e aplicou dois socos em
sucessão a Sandel, derrubando-o. E assim, pensando que o derrotara, foi
surpreendido. A Juventude erguera-se e ele, que tudo tinha apostado no seu
último golpe, viu-se incapaz de enfrentar com a energia necessária o seu
adversário reerguido, acabando por perder o combate.
E no fim, derrotado,
sem dinheiro e exausto, antes de seguir para casa, nos seus três quilómetros a
pé, lembrou-se da falta que lhe fizera um bife:
Sentia fome. Não uma
fome vulgar, daquelas que rói por dentro, mas uma grande fraqueza, uma
palpitação na base do estômago que se transmitia a todo o corpo. (...) Ah! Com
aquele bife teria vencido! Fizera-lhe falta para o golpe decisivo, e por isso
perdera. Tudo por causa de um bife!
No caminho para
casa sentou-se num banco e enervou-se ao pensar que a mulher o esperava para
saber o resultado do combate e sem
dinheiro, com dores e com uma fome que o nauseava, chorou, lembrando-se do
velho Stowsher Bill e compreendendo porque tinha ele chorado: "Coitado do
velho Stowsher Bill! Agora percebia por que razão Bill tinha chorado no
camarim.".
Beeemmm…já lhe tinha saudade:) É bonito o conto. Velhos ou jovens, somos sempre incompletos :) e nessa incompletude vivemos.
ResponderEliminarBom términus :) Força! Falta já pouco. A meta é logo ali. Mesmo.
"Uma das coisas para que se escreve é para não lembrar mais, para enterrar. Como se diz numa expressão vulgar: ligar à terra….Se deixamos fugir certos momentos em que somos menos nós e mais aquilo que é o neutro, a voz impessoal que fala em nós, nunca mais os conseguimos apanhar.. …Escreve-se para deixar um traço. Escreve-se por pensar que esse traço pode despertar no outro qualquer emoção, qualquer perplexidade, qualquer repulsa….Mas as coisas que interessam são aquelas que se escrevem por nada, só porque não podemos fazer outra coisa."
entrevista a Eduardo Lourenço
Just, é verdade, somos sempre incompletos! Grande verdade! Obrigado pelo comentário e pela força!
ResponderEliminarQuanti ao sábio Eduardo Lourenço, tem razão! Bonita definição do que é escrever....