sábado, 25 de maio de 2013

Um bife - Jack London






Mais uma vez a genialidade de Jack London é evidente no terceiro conto que pude ler do autor, depois de a fogueira e  burlado, Um bife é um conto sublime, no qual London ousa ser pioneiro na abordagem do tema do pugilismo na Literatura. Além de que é dos melhores textos que já li no que diz respeito à escolha do título, como oportunamente poderão ver.

Um bife é mais do que um conto sobre o mundo do boxe, é a descrição da luta cruel entre a velhice; sábia e cansada e a juventude; insaciável e irreverente. 

Surge-nos Tom King, um veterano lutador de boxe no fim da carreira, que numa noite de combate, está em casa, a jantar alguns pedaços de pão, mergulhados num molho engrossado a farinha, que a mulher tinha conseguido cozinhar para lhe mitigar a fome. Os seus dois filhos foram deitados mais cedo, para que o sono lhes fizesse esquecer a sensação de ardor que lhes assaltaria o estômago. Apetecia-lhe um bife, algo que a sua mulher não tinha conseguido arranjar para o jantar. No final da carreira do marido, já não lhe fiavam nem um bife, todos sentiam que no próximo combate, Tom King perderia e não traria dinheiro nenhum no bolso que lhe permitisse pagar as dívidas.

King embora fosse tranquilo fora dos combates, tinha a aparência rude e sedutora de um homem do ringue:

Era um homem entroncado, de aspecto corpulento, e de aparência particularmente atraente, embora não em excesso. (...) Tinha a cara típica do pugilista profissional, de alguém que passara muitos anos em cima dos ringues e que por isso adquirira e acentuara todos os sinais característicos do animal disposto à luta. (...) Embora tudo nele fosse de uma animalidade pura, os olhos eram a característica que mais acentuava essa aparência. Sonolentos, leoninos, faziam lembrar os olhos de uma fera."

Era uma fera marcada pelos sucessivos anos de luta, com o nariz moldado pelas duas vezes em que fora partido e pelos inúmeros socos recebidos, os nós dos dedos deformados e as veias dos braços salientes, devido ao sangue fervilhante que as tinha percorrido à máxima pressão.

Nessa noite,  Tom King iria defrontar Sandel, um Neozelandês já com alguma fama mas que veria neste combate, a hipótese de a aumentar, caso vencesse o velho King.

Saiu de casa despedindo-se da mulher, que lhe dissera "Tens de ganhar!". Tinha sido um ano de seca na Austrália e tornara-se difícil encontrar algum trabalho que lhe ajudasse a pagar as contas. E tendo em conta que tinha a mulher e dois filhos para sustentar, dirigiu-se ao combate com a sentença de que caso ganhasse o combate, iria receber a quantia de 30 libras, o que lhe permitiria pagar as dívidas e guardar o que sobrasse ou caso perdesse, não ganharia um único cêntimo.

Enquanto fazia a caminhada de três quilómetros até ao local do combate, King pensava nos seus tempos de glória, na sua juventude, de como o dinheiro fácil e a fama o moveram, lamentou-se de não ter aprendido outro ofício e lembrou-se até do velho Stowsher Bill, que tinha derrotado num combate e que chorara como uma criança, após a luta, no vestiário.

Dali até ao Gayety eram uns bons três quilómetros e, enquanto caminhava, lembrou-se de como nos bons tempos - certa vez fora campeão de pesos pesados de Nova Gales do Sul - ia para os combates de táxi, geralmente pago por algum aficionado pelo prazer de o acompanhar. Tommy Burns e aquele preto ianque, Jack Johnson... iam de automóvel. E ele a pé! E, como era bem sabido, caminhar três quilómetros não era propriamente a melhor maneira de se preparar para um combate. Estava velho e o mundo não queria saber de velhos. (...) Quem lhe dera ter aprendido um ofício! (...) Tudo tinha sido tão fácil! Dinheiro a rodos... lutas simples e gloriosas... períodos de descanso e boa vida entre os combates... um séquito de adoradores ansiosos, palmadas nas costas, apertos de mão, os aficionados desejosos de lhe pagar uma bebida em troca do privilégio de cinco minutos de conversa... e a fama, o público delirante, os finais apoteóticos, o árbitro a gritar "Ganhou King!" e, no dia seguinte, o seu nome nas colunas desportivas. (...) Ele era a Juventude, pujante; e eles eram a Velhice, em declínio. (...) Lembrou-se do dia em que vencera o velho Stowsher Bill (...) e de como, já no vestiário, Bill tinha chorado como uma criança. Talvez tivesse também rendas atrasadas para pagar. Talvez tivesse em casa mulher e dois filhos. E talvez Bill, nesse dia do combate, também tivesse sentido vontade de comer um bife.


Chegou ao clube e encontrou Sandel, o seu jovem adversário. Já no ringue, não pôde deixar de fitar a aparência do rapaz: "O seu rosto, forte e atractivo, tinha a coroá-lo uma farta cabeleira loura e encaracolada, enquanto o pescoço grosso e musculado fazia adivinhar um corpo magnífico.".

Tem início o combate e Sandel revela-se rápido e astuto, disparando socos rápidos e certeiros em Tom King, arrancando gritos à plateia. Mas King, não se deixa impressionar, era sábio e conhecia a estratégia do rapaz.
           
Percebia que aqueles socos eram demasiado rápidos e certeiros para serem perigosos. Era evidente que Sandel tencionava acabar quanto antes. Era de esperar, era próprio de um jovem esbanjar o seu esplendor e excelência em ataques selvagens e investidas furiosas, esmagando o oponente com o seu desejo ilimitado de glória e poder.


Assim continuou a luta, com o veterano a aguentar, pacientemente, os golpes do jovem Sandel, sabendo que com eles, a energia dele se dissipava.


             Conhecia o seu ofício, e conhecia a Juventude, agora que ela o abandonara. Não havia nada a fazer enquanto o outro não perdesse algum ímpeto - foi o seu pensamento, e sorriu para si próprio (...) Sandel tinha de gastar a efervescência da Juventude para a discreta Idade ousar retaliar.



Com King a limitar-se a aparar golpes e socos, muitos lhe perguntavam porque não lutava, se tinha medo de Sandel. Enquanto que outros, diziam que tinha os músculos presos, que já não se conseguia mover mais depressa. O que todos eles desconheciam era que todo este jogo, toda esta estratégia, eram a sabedoria refinada e amadurecida de Tom King, que geria ao milímetro a economia do jogo, consciente do seu estado, das energias que não podia gastar desnecessariamente e de como podia induzir o seu adversário a desperdiçar forças.

Sandel percorreu integralmente três quartos da distância, ansioso por recomeçar; mas King contentou-se em percorrer a distância mais curta. Era mais adequado à sua política de economia. Não estava bem treinado, não comera o suficiente, e cada passo contava. Além disso, já caminhara três quilómetros para chegar ao clube. (...)
Sandel esforçava-se por impor um ritmo rápido, mas King, mais conhecedor do ofício, recusava-se a fazer-lhe a vontade. O pugilista veterano sorriu com patética nostalgia e continuou a poupar energia com um zelo que só a Velhice é capaz. Sandel era a Juventude, e esbanjava a sua energia com o abandono liberal da Juventude. A King pertencia o domínio do ringue, a sabedoria acumulada ao longo de dolorosos combates. (...) No início de cada assalto, King demorava-se no seu canto, forçando o oponente a avançar e a percorrer uma distância maior. No fim de cada assalto, orientava o combate de maneira a deslocá-lo para mais perto do seu canto, de forma a poder sentar-se logo.

E de repente, sem que se esperasse Tom King foi aproveitando todas as vantagens a seu favor e abandonou a sua suposta timidez inicial, enfraquecendo o seu adversário, ao desferir-lhe alguns golpes duros, que entusiasmaram e surpreenderam o público.

E Tom King, que durante meia hora poupara a sua energia, agora gastava-a prodigamente num grande esforço que sabia ser capaz de fazer. Era a sua única oportunidade... agora ou nunca. As forças abandonavam-no, e só tinha esperança, de antes de as perder por completo, conseguir derrotar de vez o oponente.


Só que cada golpe dado, era um esforço que o enfraquecia e apesar de toda a sua estratégia, Sandel não se esgotara como King esperara. Pelo contrário, King ia ficando cada vez mais debilitado e o esforço que empreendia era imenso.

E enquanto caminhava a bater e a fazer força, calculando friamente o peso dos seus golpes e a qualidade dos danos infligidos, percebeu como era difícil pôr Sandel inconsciente. (...) Sandel oscilava e cambaleava, mas Tom King sentia as pernas a contraírem-se numa cãibra e os nós dos dedos a protestarem. No entanto, encontrou forças suficientes para desferir socos violentos, cada um dos quais percorria de dor as suas mãos torturadas. (...) Os seus murros eram certeiros, mas já sem ímpeto, e cada golpe era o resultado de um enorme esforço de vontade. As pernas pesavam-lhe como chumbo e arrastava-as visivelmente; entretanto a claque de Sandel, animada,  por este sintoma, começava a lançar-lhe gritos de encorajamento.


Com estes gritos de encorajamento, King lançou-se num derradeiro esforço e aplicou dois socos em sucessão a Sandel, derrubando-o. E assim, pensando que o derrotara, foi surpreendido. A Juventude erguera-se e ele, que tudo tinha apostado no seu último golpe, viu-se incapaz de enfrentar com a energia necessária o seu adversário reerguido, acabando por perder o combate.

E no fim, derrotado, sem dinheiro e exausto, antes de seguir para casa, nos seus três quilómetros a pé, lembrou-se da falta que lhe fizera um bife:

Sentia fome. Não uma fome vulgar, daquelas que rói por dentro, mas uma grande fraqueza, uma palpitação na base do estômago que se transmitia a todo o corpo. (...) Ah! Com aquele bife teria vencido! Fizera-lhe falta para o golpe decisivo, e por isso perdera. Tudo por causa de um bife!


No caminho para casa sentou-se num banco e enervou-se ao pensar que a mulher o esperava para saber o resultado do combate  e sem dinheiro, com dores e com uma fome que o nauseava, chorou, lembrando-se do velho Stowsher Bill e compreendendo porque tinha ele chorado: "Coitado do velho Stowsher Bill! Agora percebia por que razão Bill tinha chorado no camarim.".


Falando essencialmente da luta entre a juventude e velhice, ao longo de todo o conto, lembrei-me também de uma curiosa frase de José Saramago, que deixo para reflexão e para finalizar o meu post - "Os jovens não sabem o que podem e os velhos não podem o que sabem".

2 comentários:

  1. Beeemmm…já lhe tinha saudade:) É bonito o conto. Velhos ou jovens, somos sempre incompletos :) e nessa incompletude vivemos.
    Bom términus :) Força! Falta já pouco. A meta é logo ali. Mesmo.

    "Uma das coisas para que se escreve é para não lembrar mais, para enterrar. Como se diz numa expressão vulgar: ligar à terra….Se deixamos fugir certos momentos em que somos menos nós e mais aquilo que é o neutro, a voz impessoal que fala em nós, nunca mais os conseguimos apanhar.. …Escreve-se para deixar um traço. Escreve-se por pensar que esse traço pode despertar no outro qualquer emoção, qualquer perplexidade, qualquer repulsa….Mas as coisas que interessam são aquelas que se escrevem por nada, só porque não podemos fazer outra coisa."
    entrevista a Eduardo Lourenço

    ResponderEliminar
  2. Just, é verdade, somos sempre incompletos! Grande verdade! Obrigado pelo comentário e pela força!

    Quanti ao sábio Eduardo Lourenço, tem razão! Bonita definição do que é escrever....

    ResponderEliminar